A saudade e tristezas que as cidades submersas pelo São Francisco guardam, veja mais:
Com 2.700 km de extensão, o Rio São Francisco atravessa cinco estados brasileiros: Minas Gerais, onde nasce na Serra da Canastra, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Ao longo de seu curso natural, algumas cidades desapareceram em prol do “desenvolvimento”, dando espaço para a produção energética. É o caso de Pilão Arcado, Sento Sé, Casa Nova e Remanso, na Bahia, e Itacuruba e Itaparica, em Pernambuco. Estas cidades, suas histórias e seu patrimônio encontram-se hoje sob as águas do Velho Chico.
Casa Nova, Pilão Arcado, Sento Sé e Remanso, na Bahia, sucumbiram nas águas para dar espaço para a hidrelétrica de Sobradinho. Rodelas, Barra do Tarrachil e Glória, também na Bahia, além de Itacuruba e Itaparica, em Pernambuco, tiveram o mesmo destino para a construção da usina Luiz Gonzaga. Em algumas cidades é possível ver parte do que restou, em ruínas que se avistam total ou parcialmente fora das águas, como em Pilão Arcado e Casa Nova.
Na época, pelo menos 100 mil pessoas foram diretamente impactadas. Milhares de famílias tiveram que deixar sua terra natal e se deslocar para as novas demarcações urbanas. Os locais receberam os mesmos nomes das cidades anteriores. Quem vivenciou esse período lembra como foi difícil ver as cenas das pessoas arrumando as malas e levando o que fosse possível, inclusive partes das construções de suas casas. A adaptação em novos territórios não foi fácil.
“Eu tinha 34 anos quando recebemos a notícia de que a cidade seria submersa e não acreditamos que fosse possível. Tínhamos uma vida tranquila, saudável, onde cada um vivia de sua atividade e em uma comunhão incomparável. Mas tivemos que encarar a realidade e deixar nossas casas, de onde víamos o Velho Chico que nos fornecia sustento e onde nos banhávamos. Quando começaram a demolir, foi muita tristeza. Ficamos somente com a história e as lembranças”, conta a professora Maria Niva Lima da Silva, moradora da antiga Pilão Arcado.
A Usina Hidrelétrica de Sobradinho é um dos maiores lagos artificiais do mundo, com 4.214 km² de área e capacidade para armazenar 32,2 km³ de água. Situada no norte do estado da Bahia, foi construída na década de 1970. A UHE Luiz Gonzaga, também conhecida como Lago de Itaparica, foi construída em 1988 e tem uma área inundada de 150 km, com uma superfície de 83.400 hectares nos estados da Bahia e de Pernambuco.
Além impactos ambientais, a maior consequência, e que se estende até os dias atuais, são os impactos humanos. Em Itacuruba, a prefeitura chegou a pedir, no início da década de 2010, ajuda ao governo do estado e ao Ministério da Saúde para instalar um centro de acolhimento transitório, dedicado exclusivamente para cuidar da saúde mental da população. Na época, quase um terço dos moradores adultos tinham prescrição médica para tratamentos com remédios antidepressivos e similares.
Muitos anos se passaram, os cenários mudaram, mas as lembranças ficaram. É o que conta a cacique Pankará, Cícera Leal. Ela, assim como todo seu povo, foi retirada da antiga Itacuruba para uma nova localização. “Foi muito doloroso ver uma população toda sendo transferida na incerteza do que poderia vir pela frente. Toda uma identidade cultural foi deixada para trás. Éramos um povo que tinha seu habitat natural baseado na agricultura, pesca e caça. Estávamos deixando submersa nas águas do reservatório do lago de Itaparica toda uma riqueza que, na sombra da dúvida, enchia nossos corações de medo de não termos nesse novo espaço as mesmas certezas de terra com grande fertilidade, fauna e flora abundantes. Então, tudo isso causava estranheza e dúvidas em relação ao futuro, se seria promissor ou não. Hoje nós vivemos numa grande dependência de todos os meios de produção. Temos terras, mas com baixa fertilidade, solos bem rasos. A dificuldade ainda paira sobre nossas cabeças”, relata.
O povo Pankará vivia às margens do Rio São Francisco. Atualmente, encontra-se há mais de 10 km de distância do Velho Chico. Entre a comunidade e o rio há terras de propriedade particular, o que dificultou por muitos anos o acesso a água. Somente há quase dois anos, a comunidade passou a contar com água nas torneiras, graças a uma ação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que financiou integralmente a execução do sistema de abastecimento de água.
Do mesmo modo, outras comunidades indígenas também foram impactadas. É o caso da etnia Tuxá, em Rodelas, interior da Bahia. Além da aldeia na cidade, os Tuxá ocupavam diversas ilhas e em especial a Ilha da Viúva, no rio São Francisco, onde era o seu território agrícola. A Ilha da Viúva foi submersa pela construção da hidrelétrica de Itaparica. Com suas terras tradicionais inundadas, os Tuxá foram transferidos para três áreas diferentes.
“Em 1986 ocorreu o primeiro ato de agressão com nosso povo que foi dividido. Em 1988, fomos deslocados para a nova cidade deixando a parte do nosso território fértil onde tudo o que se plantava, se colhia. Era a garantia da autonomia do povo Tuxá, grande produtor de cebola, arroz e mandioca. Até hoje, 32 anos passados, não recebemos terras para plantio e o que fica é o sentimento de revolta, injustiça e impunidade”, afirmou o indígena Manoel Uilton dos Santos Tuxá.
Hoje presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Lago de Sobradinho, Francisco Ivan de Aquino acompanhou na época a transição das populações e relembra o sofrimento causado pelo abandono das terras originais. “Acompanhei e vi muito sofrimento; gente que esperou até o último momento e saiu já com a água chegando às cidades. Lembro que muitos tiveram depressão por perder suas roças, onde plantavam, ou simplesmente por se sentirem perdidos. O fato é que se perdeu muito e boa parte daquela população ainda sente a perda”, concluiu.(Ascom CBHSF)